Monday, December 19, 2005

Chegada, trajetória e destino do negro no Brasil


Cidadãos, famílias, grupos, e até sociedades inteiras foram retirados de seus países e seus continentes, para servir a seus semelhantes, cuja única diferença eram as características físicas e culturais. Servir de modo subumano, cruel, humilhante. Servir da forma mais vil que se pode imaginar. A escravidão trouxe consigo o questionamento das diferenças, o preconceito, o racismo e a discriminação.
Depois de atravessar fronteiras, ultrapassar seus limites, suas histórias e suas culturas, os negros sofreram humilhações, castigos, violações e violências. Após séculos de subserviência, observa-se, hoje, uma melhora dessa situação se levarmos em conta a época logo após a abolição. Novas leis, inexistentes na época, garantem os direitos humanos aos negros. Mas não é apenas a legislação que tem que fazer esse papel, é também a sociedade civil. Não são apenas as leis que precisam garantir esses direitos, são os cidadãos. E não é com hipocrisia que se vai resolver o problema. Os negros não precisam e não querem ser tolerados, querem sim, ser aceitos.
Durante toda sua trajetória, desde que chegaram ao Brasil como escravos, eles lutam, de todas as formas, pelo reconhecimento coletivo e individual, e pelo pleno exercício de seus direitos cidadão. Neste artigo procuramos fazer um panorama da trajetória dos negros desde o motivo pelo qual aportaram em terras verde-amarela, passando pela tormenta da escravidão, pela falsa idéia de liberdade, pela violação e conquista de seus direitos, além do problema enfrentado com o preconceito, até chegarmos nas possibilidades de novos rumos.

A trajetória do negro no Brasil

”Vida de nego é difícil, é difícil como quê!” Essa frase, da música Retirantes, de Dorival Caymmi, traduz bem a trajetória do negro no Brasil desde a época colonial, em que eram trazidos ao país como mão-de-obra escrava para servir nas lavouras de cana-de-açúcar. Tanto no Brasil-Colônia, quanto no Brasil-Império, a escravidão foi a “solução” encontrada para resolver o problema da falta de braços na agricultura da cana. “(...) do ponto de vista do senhor, êsses escravos eram iguais a máquinas de trabalho”. (Moura, 1972, 103)
Por ser um trabalho duro, o plantio da cana exigia braços, muitos e fortes. Foram buscar essa força nos negros africanos, dando início ao que se chamou de tráfico negreiro. Para justificar a exploração do trabalho dos negros traficados e obrigá-los a trabalhar, deu-se início à violação de seus direitos, embora não houvesse consciência dessa violação, já que a Declaração dos Direitos do Homem ainda não existia. “(...) dizia-se que não eram totalmente humanos, que só trabalhavam à base de chicote e que precisavam ser domesticados para deixar seus costumes bárbaros, semeando o racismo no coração dos homens brancos”. (Zaluar, 1996, p. 55)
Dessa forma foram chegando, deixando para trás suas famílias, suas histórias, suas culturas e suas origens. Por outro lado, lutavam e se esforçavam para manter a hierarquia de suas tribos, restabelecer seus valores e acabar com a submissão imposta pelos brancos colonizadores.

“As famílias eram dissociadas, os amigos separados, impedindo, assim, cuidadosamente, uma cooperação que visasse à melhoria (...) Os senhores de escravos da América haviam planejado com precisão, quase científica, seus sistemas, a fim de manter o negro indefeso, emocional e fisicamente”. (Luther King, 1968, 26)

Sendo, por si só, um ato de violência, a partir do momento que retirava a liberdade dos negros, o período da escravidão escreve um dos piores e mais vergonhosos capítulos da história mundial e brasileira. Um período no qual seres humanos, por serem de outras etnias e terem características físicas e culturas diferentes das dos senhores coloniais, eram subjugados, humilhados, tratados como objetos, obrigados a trabalhar para sustentar luxos e riquezas das quais não podiam desfrutar. Torturados, açoitados e maltratados, não tinham direitos nem regalias, porém, eram responsáveis pelos delitos que cometessem. Nessas horas, a lei funcionava em igualdade para todos.

“Como propriedade de outra pessoa, sujeito a seu poder, ele era legalmente morto, sem nenhum direito político ou civil, os “direitos da cidade”. Não tinha personalidade jurídica como os libertos e os nascidos livres, embora fosse condenado pelos crimes que cometesse”. (Zaluar, 1996, p. 55)

Mesmo tendo interesse em preservar a vida dos negros dos quais eram donos, muitos senhores matavam seus escravos por excesso de trabalho ou de castigos. Essa era a realidade em que vivia o negro naquela época. Mas, a exemplo dos escravos, os senhores também deviam obedecer as leis. “(...) a disciplina do senhor também era regulada. Estavam limitados por lei os açoites (cinqüenta chicotadas de cada vez) com que o senhor podia punir seus escravos, caso estes lhe desobedecessem”. (Zaluar, 1996, p.57)
Apesar da tais leis “a favor do negro” existirem, nem sempre eram aplicadas, quando dirigidas aos senhores coloniais. Apesar dos limites aos senhores serem mínimos, muitos crimes eram cometidos. “Como a Justiça das províncias não o punia sistematicamente, o senhor acostumou-se com a impunidade”. (Zaluar, 1996, p.58). Apesar de viver sob forte pressão e cruéis castigos, os escravos sempre criavam maneiras de escapar da vigilância, do medo e da passividade. Segundo Cóvis Moura, os escravos tinham a luta de movimento como sua aliada, e o sedentarismo, a luta de posição, como adversária (1972, p.231). Os mais “militantes”, que trabalhavam nas plantações de cana-de-açúcar, eram os mais explorados e castigados. Mas com a aplicação da política do medo ou, às vezes, da boa vizinhança, a escravidão também tinha seus momentos de calmaria. Isso acontecia quando os escravos obedeciam cegamente a seus senhores e aceitavam tudo com passividade, aceitando uma ou outra forma de persuasão.

“ao menor sinal de revolta ou discordância, o senhor mostrava sua crueldade e sua ferocidade, com toda a violência dos instrumentos de tortura e morte a seu dispor. Em outras palavras, a escravidão só funcionava quando conseguia implantar o medo no coração do escravo. Castigar cruelmente até matar tinha o efeito de espalhar o medo e servir de exemplo para quem pensasse em se revoltar. (Lara, 1988 apud Zaluar, 1996, p.59)

O medo sempre esteve presente nos dois lados. Os escravos temiam a crueldade dos donos, que por sua vez, temiam a rebelião dos escravos. Por isso eram rigorosos na hora da punição. Alguns pregavam a idéia de se comprar negros jovens, mais fáceis de domesticar. “Já naquela época as crianças eram usadas para manter uma ordem social injusta”. (Zaluar, 1996, p.61)
Divisões entre os próprios escravos também traziam diferenças de tratamento. Os negros eram divididos entre os domésticos, mais próximos aos senhores, dóceis, submissos, e por isso mais valorizados - o que lhes assegurava o paternalismo senhorial - e os que trabalhavam na agricultura da cana, mais rebeldes, e consequentemente, mais castigados.
Havia ainda os escravos urbanos que trabalhavam nas ruas, em ofícios específicos como carpinteiros, ferreiros, padeiros, sapateiros, carregadores e até vendedores de doces e água. Com esses trabalhos, de certa forma independentes, sem a vigilância acirrada das lavouras, esses escravos tinham mais facilidade de juntar dinheiro para comprar suas alforrias. Mulheres e mestiços de peles mais claras também tinham maiores chances de serem libertos.
Os que não tinham esperanças de comprar a liberdade fugiam na primeira oportunidade. Muitos morriam ou eram recapturados. Os que tinham mais sorte se agregavam aos quilombos, grupos formados pelos fugidos que se organizavam para se defender e sobreviver. Esses grupos eram, geralmente, violentos. Precisavam dessa violência para se defender e para se vingar contra os que os escravizaram e torturaram.

“Não viviam, porém, êsses escravos, em simples passividade de fujões. Pelo contrário: tinham um espírito ofensivo surpreendente, atacando estradas, assassinando capitães-do-mato, feitôres etc, recolhendo-se em seguida para o recesso das matas que tão bem conheciam”. (Moura, 1972, 123)

Pequenos grupos volantes foram formados para atacar as estradas, roubar mantimentos e objetos para os quilombos, cujas produções limitavam-se às lavouras. Eram as guerrilhas, uma resistência quilombola para manter as milícias distantes. Usando algumas táticas e muita astúcia, esses refugiados lutaram e conseguiram sobreviver até a extinção da escravatura.
Os negros das guerrilhas dividiam-se em pequenas aldeias, fáceis de abandonar com a aproximação das milícias. Tinham fortes ligações com os escravos dos engenhos, o que garantia os mantimentos, tornando desnecessário o plantio de lavouras. Isso ajudava a manter o grupo e sobreviver nas matas. Com tamanha determinação, conseguiram resistir até a “tão esperada liberdade”. As mudanças advindas com essa liberdade, porém, não tiveram o efeito desejado. Falta de trabalho, fome, preconceito. Essa passou a ser a realidade dos ex-escravos no país.

Primeiros passos após a liberdade

Na época do Brasil-Império, os negros já eram homens livres, porém, excluídos dos direitos políticos e civis. A Constituição da época garantia a liberdade, mas a vida mostrava que eram duplamente preteridos. “Viviam em ínfimas camadas sociais a que também estavam ligados por uma linha de côr”. (Luther King, 1968, 31)
No Brasil, direitos políticos e civis só eram permitidos aos que tinham posses e boa renda. Homens pobres, negros, brancos ou mestiços em sua maioria, eram obrigados a ter passaporte para viajar dentro do país e assinar termos de segurança. “Eram todos considerados perigosos vadios e estavam permanentemente sob vigilância”. (Guimarães, 1982; Mello e Souza, 1986 apud Zaluar, 1996, p.62)
Na época do Império, a vadiagem e a mendicância se tornaram objetos de punição, os chamados “crimes policiais”. Logo após a abolição entrou em discussão uma lei de “repressão à ociosidade”, que rezava que todos os ociosos seriam levados a colônias agrícolas para cumprir penas de até três anos. Dessa forma se “resolveria”, pela segunda vez, o problema da falta de mão-de-obra na lavoura da cana, já que o trabalho escravo não mais existia. Começou-se, então, uma verdadeira caça aos “preguiçosos”. No caso dos negros era fácil difundir o mito de que eram vadios e preguiçosos. Simplesmente esqueciam o passado de trabalho árduo dos escravos em todos os setores de produção. “Esse mito ainda hoje é invocado para explicar a prosperidade do Sul do país, para onde foram a maioria dos imigrantes brancos, e a pobreza do Norte, onde está a maior parte dos brasileiros miscigenados”. (Zaluar, 1996, p.66)
Mas a força dessas afirmações se desfaz com a história. Como na época da escravidão os brancos não precisavam trabalhar, foram os negros que desenvolveram e guardaram as técnicas das profissões artesanais, embora, na condição de ex-escravos, fossem, geralmente, preteridos na hora das seleções de empregos. “Além disso, a memória recente da escravidão os fazia desconfiar de qualquer patrão. Eles recusavam não tanto o trabalho mas a disciplina do trabalho que os obrigava a obedecer a um patrão”. (Chaloub, 1986 apud Zaluar, 1996, p. 84)
Os que aceitavam trabalhar em empresas e fábricas disputavam vagas com os brancos, tendo contra eles, o preconceito. As vagas eram poucas para o número de trabalhadores. A competição instalou-se entre brasileiros (negros e mulatos) e estrangeiros, que passaram a controlar certas atividades e ter a preferência de comerciantes e industriais.
As mulheres negras continuaram como domésticas, onde sempre foram maioria, embora, as famílias mais ricas dessem preferência às empregadas brancas. As crianças também ajudavam no sustento da família com a venda de balas e doces – como até hoje vemos nas ruas e sinais das grandes cidades. Alguns negros foram trabalhar na estiva, outros, nas construções civis. Mas, por conta desse preconceito infundado, nem todos conseguiam trabalho. Muitos passaram a impor suas próprias regras, exercendo pequenas profissões nas quais eram especializados e podiam impor suas próprias regras e horários. Dessa forma, ganharam as ruas.

“A cidade povoou-se de tipos como o vendedor de passarinho, de orações e de músicas; o catador de rótulos, selos de cigarro e papel; o caçador de gatos (vendidos como coelhos), o trapeiro, o tocador de realejo, o músico ambulante e outros”. (Salvatore, 1990 apud Zaluar, 1996, p. 85)

Vieram as reformas urbanas com o objetivo de limpar as cidades e, com elas, as leis que regulamentavam o trabalho autônomo. Isso criou muitas dificuldades para os negros que trabalhavam nas ruas. Regulamentar os ofícios era caro e demorado. Passaram a exigir licenças, excesso de documentos, atestados fiscais e altas taxas.
Por causa da grande carga, muitos desses trabalhadores partiram para o jogo e a prostituição, entre outras ocupações marginais. Peixes pequenos, dentro de grandes organizações formadas e comandadas por portugueses, os que menos sofriam acusações de contravenção. “A impunidade dos empresários do crime é tão velha quanto a República brasileira” (Zaluar, 1996, p. 93). No entanto, eram os negros que sempre iam presos por vadiagem e desordem. Brasileiros pobres e sem direito de defesa, taxados de vadios, enquanto os estrangeiros continuavam sendo considerados bons trabalhadores (Zaluar, 1996, p. 85).
A República preferiu apostar na violência para mudar a sociedade, e os preferidos pela polícia eram os pobres, negros e mulatos. Nessa época a polícia prendia muita gente e a população se admirava, achando que a cidade ficaria livre da desordem e do crime.
A proposta das reformas urbanas deu-se na chamada Belle Époque, quando se pensava fazer, do Brasil, um país europeu, “civilizando” a nação com costumes do velho mundo. “(...) a assumida superioridade da “cultura européia” serve ao mesmo tempo de comprovação empírica da superioridade biológica dos brancos e de referência para a avaliação dos diversos graus de inépcia dos não-brancos para a vida civilizada. (Hofbauer, 1999 apud Costa, 2004, 29). Os cortiços também deveriam ser retirados dos centros das cidades. Mas a única coisa que consegui-se com a retirada dos cortiços dos centros das cidades foi o surgimento de favelas, com rápido crescimento.
Para enfatizar a europeização, as culturas e tradições afro-brasileiras, vistas como atraso cultural não eram permitidas. Nos bairros populares, por exemplo, festas e batucadas promovidas por negros incomodavam a população branca porque sempre acabavam em sessões de candomblé. Por esse motivo, o samba já nasceu proibido pela polícia. Apenas a cultura européia representava o progresso.
O objetivo da repressão era separar o trabalho da vagabundagem, sem perceber os diferentes trabalhos que contribuíam para o bem estar comum. Não levavam em conta que nem todo mundo pensava da mesma maneira e os hábitos não poderiam ser mudados à força.

A origem do preconceito

O que é o racismo senão a suposição de superioridade de uma raça entre as demais a partir de características físicas selecionadas arbitrariamente? Com a chegada dos negros trazidos a força como escravos, as diferenças raciais foram motivo de subjugação e hierarquização de poder, capacidade e inteligência, restando aos negros, a ponta final dessa corda.
Essa hierarquização deixou conseqüências sócio-econômica desastrosas, assim como diferenças culturais. No que se refere ao quesito sócio-econômico, em uma estrutura desigual de oportunidades fica evidente a limitação de chances de sucesso para os que ocupam posições sociais subordinadas. Já no que diz respeito à dimensão cultural, o racismo se manifesta no dia-a-dia, como formas bizarras de comportamento (humilhação e insulto), e até por exclusão social. Como após a abolição não houve a desconcentração de poder econômico, nem os negros puderam exercer seus direitos políticos, o poderio, nas mãos dos ex-senhores, continuou permitindo a violação dos direitos dos ex-escravos. Dessa vez não eram os direitos coletivos que eram atingidos, mas os direitos civis individuais.

“A escravidão e o colonialismo, fenômenos estreitamente ligados, geraram e cristalizaram estereótipos, preconceitos e visões do mundo e da sociedade que vêm-se transmitindo culturalmente aos que se julgam descendentes dos ex-senhores e das antigas elites colonialistas nas ex-metrópoles. São estes estereótipos, e naturalmente a defesa de interesses concretos que até hoje existem derivado daquelas situações passadas, que provocam comportamentos nas esferas coletivas e individuais que violam direitos políticos, econômicos e sociais, de que são vítimas os Estados que sucederam as colônias e os descendentes dos escravos e nativos”. (Guimarães, 1998, 1035)


O negro hoje

Historicamente falando, a escravidão e o colonialismo foram os sistemas de violação de direitos humanos mais graves, apesar de “não oficial”, já que, na época, a Declaração dos Direitos Humanos não existia. Embora já superados, esses fatores ainda deixam seus rastros, pois persistem, até hoje, situações, pontuais ou não, de racismo e preconceito.

“Conforme reconhecido pela declaração da ONU sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, as “violações maciças e flagrantes dos direitos humanos” são resultado do “colonialismo, neocolonialismo, apartheid, de todas as formas de racismo e discriminação racial, dominação estrangeira e ocupação, agressão e ameaças contra a soberania nacional, à unidade nacional e à integridade territorial e de ameaças de guerra”, processos sociais que devem ser superados como condição para a busca da paz”. (Bevenuto, 2001, p. 85)

Ainda hoje a legislação brasileira reforça a discriminação quando permite que a concentração de poder político eleja os legisladores, em sua maioria, representantes dos próprios grupos que concentram poder econômico e social, entre outros. Isso cria um círculo vicioso, difícil de ser quebrado.
Dessa forma, quem concentra o poder tem o respaldo do Estado, e faz com que as leis contribuam ainda mais para essa concentração, que comete, por sua vez, enormes disparidades, acentuando as perdas dos grupos subordinados. Mesmo que um ou outro indivíduo consiga furar a regra e ascender individualmente, isso seria uma vitória individual, não representativa da raça negra em termos quantitativos e/ou qualitativos, no que diz respeito à luta contra o preconceito. “A ascensão social não elimina a discriminação racial, ainda que possa reduzi-la ou suavizá-la”. (Kant Lima, 1995 apud Cardoso de Oliveira, 2004, p. 81)
É fato que a concentração de poder, assegurada pela legislação, reforçou, no decorrer da história, uma situação de inferioridade, trazendo à tona diferenças entre indivíduos e grupos sociais. Nasceram os estereótipos que “justificam” e perpetuam a discriminação e a concentração de poder, inclusive entre os próprios oprimidos. Assim, vão se confirmando as violações dos direitos desses grupos e a impunidade dos violadores.
Para se começar a pensar no fim do preconceito, é necessário promover a desconcentração desse poder, através execução de políticas públicas. “É, portanto, na arena política mais ampla e coletiva que a luta mais eficaz pelos direitos humanos pode vir a triunfar de fato, isto é pode eliminar as causas mais profundas das violações”. (Guimarães, 1998, 1044)
Para se ter uma idéia do preconceito enfrentado pelos negros em dias atuais, basta-se recorrer ao que acontece, diariamente, na política trabalhista, onde se nota, claramente, a desigualdade de oportunidades. Se por um lado, os cargos mais especializados, como atividades intelectuais e/ou manuais, com altos índices de comprometimento psicossocial e cultural e políticas de crescimento nas empresas são ocupados por pessoas de cor branca, o mesmo não acontece com as pessoas de cor negra, que ocupam, geralmente, trabalhos não qualificados, ou semiqualificados, exercendo subcontratos temporários, sem nenhuma garantia ou estabilidade, sujeitos a outros salários (bem mais baixos) e outras regras de trabalho. (Ianni, 2004, p. 81)
Para melhorar essa situação, o ideal seria resolver o problema na base, aumentando as chances de inclusão social através do incentivo à educação e o ingresso na universidade. O atual governo do Brasil instituiu cotas para a inclusão do negro no ensino superior. Por um lado, essas cotas têm sua conotação positiva, pois, como diria Cardoso de Oliveira, seu objetivo não é a inclusão direta, mas um benefício camuflado por trás disso tudo.

“(...) em vez de acionar as “cotas” como política de inclusão social direta, dando acesso à renda através da entrada imediata na Universidade, o objetivo precípuo da medida seria provocar uma mudança nas atitudes dos atores, para que se tornem mais críticos à discriminação e ao filtro da consideração”. (2004, p. 87)

O percentual mínimo proposto para as cotas não teria nenhuma relação com a proporção de representantes negros na sociedade. O objetivo seria apenas chamar a atenção das pessoas para a discriminação, compartilhando a experiência e provocando a opinião pública.

“A idéia seria de que o estabelecimento de um percentual mínimo de vagas para negros nas Universidades públicas faria com que a discriminação racial, e a sua inaceitabilidade numa sociedade democrática, fosse dramatizada periodicamente (quando da realização dos vestibulares), viabilizando a internalização do problema através da mobilização dos sentimentos dos atores em segmentos expressivos da sociedade e contribuindo, assim, para a rearticulação entre esfera e espaço públicos no Brasil, pelo menos no que concerne à crítica a nossas práticas cotidianas de discriminação cívica contra negros e cidadãos desprivilegiados de uma maneira geral”. (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 88)

Por outro lado, a conotação negativa das cotas estaria no fato que ela coloca o negro numa posição intelectual de inferioridade, a partir do momento em que é criada uma reserva de vagas destacada no vestibular, para pessoas que, teoricamente, não teriam chances de sucesso se dependessem da própria capacidade, devido, ou não, a qualidade do estudo secundário que receberam.
Mesmo que as médias dos cotistas sejam iguais, ou até mais altas do que as dos não-cotistas, a idéia de incapacidade seria implantada, uma vez que as médias não são divulgadas para a sociedade, nem mesmo comentadas. “Nada é mais significativo para o mercado e a sociedade abrangente do que o desempenho acadêmico do aluno ao longo do curso, e a curta experiência com “cotas” no Brasil tem demonstrado que os estudantes beneficiados têm tido desempenho igual ao superior aos demais”. (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 90)
Pesa também o fato de que, um negro que tem a total ciência de sua capacidade para passar no vestibular sem precisar apelar para a cota acaba tirando a vaga de um outro cotista, caso, por ideologia, prefira optar por esse meio. Caso ele não recorra às cotas, seria, ao invés de um, dois negros na universidade, já que o negro não-cotista deixaria sua vaga em aberto para outro. Existe ainda o fato de que negros e brancos, vindos de escolas públicas disputam, em pé de igualdade, às vagas universitárias. Aí estaria o cerne do problema.
Se adotássemos uma política que investisse mais na educação elementar, criando-se condições para que todo estudante oriundo das escolas públicas tenha condições de competir em igualdade com os estudantes de escolas privadas, aumentaria o número de estudantes negros nas universidades, levando em conta que são maioria nessas escolas, até por conta da própria história da raça. Dessa forma teriam benefícios reais, já que eles entrariam nas universidades públicas, por mérito próprio, sem precisar das cotas, que deixariam margens quanto à real capacidade do estudante negro.
Além do mais, como, no Brasil, o que define a etnia de uma pessoa é, nada além da declaração pessoal de cada um, é difícil controlar fraudes, em que candidatos brancos declarem-se negros apenas para terem aumentadas suas chances de ingresso às universidades públicas, ou ainda negros que não se inscreveriam nas cotas por vergonha de assumir a própria origem.

Hipocrisia à brasileira

Depois da abolição da escravatura, os negros libertos no Brasil não tiveram problemas de segregação em locais públicos como aconteceu nos EUA até a década de 60. No Brasil também nunca foi proibido o casamento entre pessoas de etnias diferentes. Com a maior população negra fora da África, o país nunca separou, legalmente, grupos por cor. Por outro lado, os negros brasileiros enfrentaram, e ainda enfrentam, outras formas de discriminação e preconceito, mais sutis, embora igualmente objetivas. Eles não tinham os direitos, coletivos ou individuais, negados, porém, de uma forma menos aparente, eram vítimas do insulto moral.
Não se trata de insultos raciais, mas de situações nas quais o preconceito está embutido em atitudes racistas, não se traduzindo em evidências materiais. São situações nas quais aquele que respeita os direitos de outro cidadão não está convicto de que, em seu ato, reconhece a dignidade do outro, ou dos direitos àquela circunstância. De fato, o racismo representa uma das mais fortes violações dos direitos humanos a partir do momento em que gera desigualdade na liberdade subjetiva e material dos cidadãos.
Estudos sobre o Brasil destacam a presença do racismo no país em dois momentos: nas oportunidades sociais, que mostram o desfavorecimento do negro, e nas experiências cotidianas, que trazem sinais de humilhação e inferiorização em diversos contextos. Na verdade isso dá margens para uma pergunta que venho me fazendo há algum tempo: qual o pior tipo de preconceito? O preconceito direto e escancarado dos EUA ou o preconceito camuflado e hipócrita do Brasil?
Ativistas norte-americanos chegaram a acreditar que a miscigenação brasileira e a cordialidade entre os diferentes grupos raciais pudessem ser exemplo para combater o racismo nos EUA. “As primeiras pesquisas sobre as relações raciais produzidas por pesquisadores norte-americanos (...) confirmaram o diagnóstico favorável dominante, concluindo que o Brasil havia efetivamente logrado construir uma sociedade de classes multirracial e competitiva”. (Costa, 2004, p. 34)
Estudos da Unesco mostraram, contudo, a continuidade do desfavorecimento da raça negra, que anos após o fim da escravidão, continuavam ocupando trabalhos menos qualificados e recebendo baixos salários. “A chamada “democracia racial” brasileira mostrava-se não mais como um modelo a ser seguido, mas como uma fina camada de cordialidade ideológica a recobrir a dura realidade da opressão dos afro-descendentes”. (Costa, 2004, p. 34)
As relações étnicas no Brasil chegaram a ser tomadas como solução para a materialização dos direitos humanos em todo o mundo, mas a história resolveu mudar de rumo e os norte-americanos descobriram seu próprio caminho para combater o racismo, que buscaram, mais tarde, ensinar aos brasileiros. O movimento de direitos civis americanos e as lutas anti-racistas dos EUA passaram a ditar as formas de ação coletiva para reverter a discriminação brasileira. Intensificaram-se também as pesquisas de desigualdades de oportunidades para brancos e negros.

“As raças no Brasil, não se limitam à oposição entre brancos e negros (...) Como disse o pesquisador Oracy Nogueira, o racismo brasileiro é de marca, e não de origem. Uma pessoa pode ser filha de negros mas ser considerada branca em virtude da cor de sua pele e de outras características raciais”. (Zaluar, 1996, p.66)

A discriminação racial no Brasil é apenas uma pequena mostra da discriminação cívica no país. O maior problema está no racismo “oculto”.

“Nesse sentido, características como as do estilo indireto da discriminação, da vergonha do preconceito, e das ambigüidades da classificação racial têm sido comparadas à violência explícita da discriminação racial nos EUA, à existência do apartheid até os anos de 1960, e à nitidez da classificação racial, onde a chamada color line pode ser estabelecida com precisão”. (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 81)

É que, além da discriminação ser uma prática ilegal, com penalidades previstas em lei, há também o aspecto negativo no plano moral. Assim, mesmo quando não se quer esconder o preconceito intencionalmente, ele vem de maneira implícita, irrefletida. E essa falta de consciência sobre atitudes preconceituosas eventualmente esboçadas não é de todo surpreendente. “Uma das características das práticas de discriminação indireta vigentes no Brasil é que ela costuma aparecer de maneira dissimulada, sendo por vezes de difícil identificação mesmo para aqueles que sofrem na pele os seus efeitos”. (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 82)
Além da discriminação, existe o preconceito. Ambos são práticas associadas que caracterizam o racismo. A associação entre a discriminação indireta e o preconceito demonstra como um pode esconder o outro, especialmente quando aceitar o negro é um ato aparente e o preconceito irrefletido continua presente, levando à negação de direitos.
Quem reconhece o outro como cidadão igual tem ainda que ter discernimento para demonstrar que o faz porque acredita de fato que ele o é, e que tal cidadão é merecedor deste reconhecimento. A falta de reconhecimento do valor de um indivíduo, ou de um grupo, pode constituir uma agressão. “Reconhecer apenas por imposição legal pode ser, em si mesmo, um ato ofensivo. Deste modo, o reconhecimento ou a consideração poderia ser definido como um direito moral, de caráter eminentemente recíproco (Cardoso de Oliveira, 2004 apud Cardoso de Oliveira, 2004, p. 86), pois não pode se realizar unilateralmente ou na ausência de um mínimo de mutualidade entre as partes”. (Cardoso de Oliveira, 2004, p. 86)
No Brasil, onde, após a abolição os negros nunca foram formalmente discriminados, onde se estabeleceram leis anti-racismo, no qual o Estado teve importante papel de divulgar a ideologia da democracia racial, e onde não há tensões entre brancos e negros no cotidiano, é compreensível que o racismo, o preconceito e a discriminação se escondam ao mesmo tempo em que se manifestem.
Na verdade, o que acontece no Brasil é que o preconceito é, muitas vezes, inconsciente e por isso nem sempre se manifestam por meios de atitudes discriminatórias. As pessoas trazem o preconceito tão arraigado na própria cultura, que não alertam para as conseqüências de seus atos violadores dos direitos. É o caso da famosa expressão “preto de alma branca”, que muitas vezes não pretende ferir ninguém.

Conscientização e mobilização como rota alternativa através da comunicação popular

Estudos mostram que, em termos quantitativos, falta à população negra no Brasil, consciência racial, além da convicção de que é possível desenvolver tal consciência através da formação de lideranças e projetos educacionais voltados para a afirmação da identidade e dos direitos. Esses líderes agiriam como mentores do movimento. Pessoas engajadas, com idéias claras e opiniões formadas, que conseguissem passar sua mensagem não apenas ao grupo do qual fazem parte, mas para toda a sociedade, quebrando, dessa forma, dogmas e preconceitos ainda existentes, pois funcionariam como formadores de opinião pública.
Mas para essas pessoas alcançarem um posto de formador de opinião precisam driblar um problema que ainda persiste: a concentração de poder. Como convencer os legisladores, concentradores de poder, a abrir mão de seus espaços para que outros busquem, por meio deles, a igualdade dos direitos?
Os meios de comunicação se colocam como ótimas alternativas para esse fim. E é exatamente aí que aparece o segundo problema: quem concentra o poder da comunicação são os mesmos que concentram os demais poderes. Não é a toa que os governos vêm, sucessivamente, distribuindo concessões de canais de comunicação a senadores e deputados, em troca de favores políticos. Esta concentração viola gravemente os direitos políticos, através da manipulação da opinião pública, da influência sobre o processo eleitoral e sobre o exercício do governo. Muitas vezes ela funciona, também como difusora de preconceitos e defensora da concentração de poder.

“Na realidade, somente a intervenção coletiva da comunidade, através da legislação e do poder de coerção do Estado, pode desencadear mecanismos de desconcentração de poder. Somente desmontando os mecanismos de concentração de poder e substituindo-os por mecanismos de desconcentração se poderia atuar com eficácia para modificar o substrato geral de onde brotam as violações”. (Guimarães, 1998, 1040)

Já é visível que a mídia está mudando e não é mais formada apenas por brancos. Acontece que a inserção do negro na mídia se faz, na quase totalidade, de forma dependente. Dificilmente se vê um comunicador negro de prestígio, conhecido na sociedade. A maioria, principalmente entre os apresentadores de programas de tv, são homens brancos. Não adianta, pois, apenas permitir que o negro tenha acesso aos meios de comunicação, para que eles contribuam tão somente para repassar a mensagem dominante. É necessário abrir espaço para que ele chegue sim, a contribuir com a opinião pública, chegue na mídia para ocupar o posto de formador de opinião, e não apenas como reprodutores do pensamento hegemônico. Na comunicação, assim como nos demais setores, quem domina os meios de produção não permite que a classe dominada, ou minorias discriminadas difunda suas idéias.

“A concentração de poder nos meios de comunicação deriva do sistema de concessões feitas pelo poder público, em uma versão moderna da prática colonial das sesmarias. Os meios modernos de produção e difusão da informação, como a Internet, permitem teoricamente a qualquer indivíduo produzir e distribuir suas idéias. Todavia, na prática são as grandes organizações empresariais privadas que dominam o mercado da informação, devido ao elevado capital necessário à sua instalação e operação, inclusive por causa da sofisticação técnica dos equipamentos, ao contrário do que ocorria nos primórdios da imprensa”. (Guimarães, 1998, 1033)

A solução que se pode pensar para atingir públicos, mesmo que limitados, seria a comunicação popular. E nesse contexto, as rádios se colocam como um dos veículos mais úteis, pelo fato de se tratar de um meio de comunicação com grande aceitação e difusão, podendo ser ouvido em qualquer parte, a partir do momento que ele vai até a comunidade através de canais ou difusores em vias públicas. E nessa dimensão, as rádios comunitárias se colocam como uma das melhores opções, desde que são veículos que existem para tal fim, e que, ao contrário das rádios comerciais, comandadas pelos “donos do poder”, estão nas mãos da sociedade civil.
Apesar de eficiente, ainda é incerto o resultado que pode se esperar desses veículos, pois, quem libera as concessões das rádios comunitárias são as mesmas pessoas que concedem os canais comerciais e continuam com jogos políticos, mesmo quando se trata de líderes comunitários. Os intelectuais representativos do movimento negro que optassem por esse veículo para difundir as idéias do movimento enquanto formadores de opinião deveriam ter consciência e caráter suficiente para não sucumbir às idéias dominantes. Essas rádios poderiam funcionar exemplarmente, a partir do momento que deixassem claro seus objetivos, que fossem usadas como ferramentas na busca da cidadania, e não como difusor de idéias hegemônicas em troca de favores, como acontece com as empresas privadas de comunicação.

Conclusão

A chegada dos escravos negros no Brasil no século XVI foi a partida para a violação dos direitos humanos no país, ainda na época do Brasil-Colônia. Após séculos de maltratos, lutas e fugas chega enfim a liberdade. Mas a tão esperada igualdade racial não veio junto. A abolição trouxe consigo o desemprego, o preconceito e a humilhação do negro.
Na época da abolição a Declaração Universal dos Direitos Humanos já estava integrada à Constituição brasileira, aliás, ela foi integrada à Constituição quando o país ainda era escravista. Mas isso não impediu a violação de tais direitos. Por isso alguns autores dizem que tal declaração tem apenas um sentido formalista, sem conseqüências práticas. Talvez no plano constitucional essa violação fosse mais branda, mas eram fortes nas relações sociais de uma sociedade preconceituosa, que humilhava os negros em suas práticas cotidianas. Mas até a própria Constituição pós-escravista, bem como as que a sucederam, limitavam suas ações quando se tratava dos direitos desse grupo, trazendo uma falsa idéia de liberdade e igualdade, o toquenismo.
Chega a República, e com ela, a tentativa de se limpar as cidades brasileiras e criar hábitos europeus. Foi criada a tese do embranquecimento da população, através da qual, com a miscigenação e a imigração européia para o Brasil, esperava-se que a população branca predominasse sobre a negra. Como não houve tal “transformação”, e como, com o passar do tempo, uma parcela da população negra, consciente de sua raça e de sua história, passou a não querer ser considerada branca, a sociedade brasileira teve que enfrentar seu preconceito racial em todas as esferas. Não se trata apenas de tolerar, mas aceitar tanto a diversidade racial, quanto as diferenças culturais. Superar a opressão sem deixar que as relações sociais se regulem com base apenas nos anseios morais. Este é o objetivo, infelizmente ainda não alcançado.
Em dias atuais, mesmo vivendo em uma democracia, podemos dizer que o fim do preconceito racial ainda está longe de acabar. Racismo e discriminação social existem no Brasil desde sempre. A imagem do negro como biológica, cultural e intelectualmente inferior ainda perduram, assim como as violações e o desrespeito aos direitos. Algumas vezes as violações são geradas mais intensa e freqüentemente do que as soluções. Entidades anti-racistas ainda não têm força política suficiente para enfrentar os mecanismos de concentração de poder, disfarçando, dessa maneira, a existência desses mecanismos. Isso desvia os esforços que poderiam estar sendo empenhados em sua reversão.
Com a falta de força e de articulação dessas entidades, o movimento negro sai enfraquecido, e por mais que se fale em liberdade de expressão, quando confrontado com a mídia que tem a seu poder a comunicação de massa, essa liberdade se dilui, não alcança o público na mesma proporção, e com isso, não atende seus objetivos.
Uma das alternativas para se definir, senão o destino, ao menos os rumos que podem tomar essa parcela da população, vítima de preconceito racial, é criar, entre eles, lideranças que funcionem como formadores de opinião pública e que consigam, na esfera da sociedade civil, difundir suas idéias e tentar acabar com as diferenças criadas por indivíduos que se acham etnicamente superiores, sem o ser de fato.
Uma vez definidas essas lideranças e formadas suas idéias, esses líderes devem se integrar no processo de comunicação de massa, podendo, dessa maneira, contar com a mesma força da mídia, com a mesma intensidade e o mesmo espaço com que conta, hoje, o pensamento hegemônico. Para começar essa “infiltração” nos veículos de comunicação, esse público deve ganhar o apoio da sociedade a partir dos preceitos dos movimentos populares, difundidos através de veículos e canais de comunicação comunitários, como rádios, tvs e jornais de bairros e associações. Essa mídia, embora não tenha um alcance abrangente como os veículos pertencentes a empresas privadas, coloca-se como uma alternativa para um bom começo na busca da cidadania. Sem esse confronto direto e sem esse ganho de espaço em prol dos grupos subordinados e discriminados, jamais poderemos dizer que há, na realidade brasileira, liberdade de expressão e avanços na luta pela igualdade racial.
Eveline Alves
Recife, junho de 2005

Bibliografia

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ZALUAR, Alba. Da revolta ao crime S/A. Capítulos 4, 6 e 7. São Paulo: Moderna, 1996

O papel dos meios de comunicação alternativos na luta contra a desigualdade


O Estado é de todos, para todos e por todos. Ao menos essa é a teoria que deveria ser aplicada. Mas como sabemos, a teoria, na prática, é outra. O Estado está voltado aos interesses da classe burguesa, dominante, enquanto faz a massa dominada acreditar que também faz parte desse bojo.

“Gramsci considerou o Estado como uma extensão do aparelho hegemônico, como parte do sistema desenvolvido pela burguesia para perpetuar e expandir seu controle sobre a sociedade no contexto da luta de classe”. (Carnoy, 2004, 100)

Ainda segundo ele,

“... a noção geral de Estado inclui elementos que também são comuns à noção de sociedade civil (neste sentido poder-se-ia dizer que o Estado = sociedade política + sociedade civil, em outras palavras, a hegemonia garantida pela couraça da coerção)”. (Gramsci, 1971, 263 apud Carnoy, 2004: 98)

As classes subordinadas são levadas a acreditar na ideologia das dominantes e aceitá-las, como se fosse sua. Elas mesmas consentem essa dominação. Mas isso não se dá a troco de nada. Através da força e do convencimento, a classe hegemônica burguesa, que detém o poder, molda, como quer, a sociedade civil, em busca de uma hegemonia, já garantida. Pois bem, ninguém duvida que já há, entre as classes, uma hegemonia enraizada e comandada pela burguesia. “... a hegemonia significa o predomínio ideológico das classes dominantes sobre a classe subalterna na sociedade civil”. (Carnoy, 2004, 93)
Para Gramsci, a hegemonia tem dois significados: o primeiro é o exercício do controle de uma parte da classe dominante na sociedade civil, através de lideranças moral e intelectual sobre outros grupos da mesma classe. O grupo que detém o poder e a capacidade de articulação dos interesses das outras partes impõe sua própria ideologia, ou seja, ele combina seus princípios hegemônicos com elementos de interesse comum da classe, para manipular e manter o controle. O segundo significado diz respeito a relação entre as classes dominantes e dominadas. Aqui a classe dominante impõe sua visão de mundo como abrangente e universal, através de suas lideranças política, moral e intelectual. Dessa forma, molda os interesses e as necessidades dos grupos subordinados.
E o pior nisso tudo, é que, quando se trata do segundo exemplo, quando podemos observar que as diferenças entre classes são bem mais sensíveis, notamos que toda essa estrutura existe com o consentimento da classe dominada, que acredita, realmente, também fazer parte dessa parcela privilegiada. “O controle da consciência é uma área de luta política da mesma forma, ou até mais, que o controle das forças de produção”. (Carnoy, 2004, 102)
Como então reverter essa falsa idéia de poder que faz uma classe (subalterna) lutar em prol dos objetivos de outra (dominadora) que continua sobrevivendo às custas da opressão da primeira? A comunicação tem, nesse sentido, papel primordial, além do dever de desfazer essa visão. Mas como, se os meios de comunicação são controlados pela burguesia dominante? É a hora de se pensar em uma das poucas opções funcionais que resta às classes subalternas: os veículos alternativos de comunicação. Veículos que chegam ao povo, que devem ser dirigidos, formulados e ‘controlados’ por intelectuais militantes, líderes críticos e conscientes, que possam organizar as massas e encaminhá-las na busca de seus direitos e na luta pelo reconhecimento, definida, em parte, por Axel Honneth como resistência coletiva. É sobre essa forma de comunicação e esses caminhos que falaremos a seguir. Para isso, nos basearemos nos conceitos de Antônio Gramsci de Estado, sociedade civil e hegemonia, e de Axel Honneth sobre a luta pelo reconhecimento.
A proposta deste trabalho é tentar mostrar, segundo as teorias de Gramsci, passando por alguns conceitos de Honneth, a mecânica de manipulação do Estado, e consequentemente, da burguesia para com as massas, e levantar a questão se há, realmente, uma possibilidade concreta para uma mudança de estratégia das classes dominadas, que partiriam de uma situação de defesa estática para um contra-ataque funcional através dos meios de comunicação alternativos.

O Estado e as Sociedades de Gramsci

Segundo Gramsci o Estado, constituído tanto pela sociedade civil, quanto pela sociedade política, é um instrumento de expansão da hegemonia burguesa, além de uma forma de repressão das massas dominadas.

“Para Gramsci o Estado, como superestrutura, torna-se uma variável essencial, em vez de secundária, na compreensão da sociedade capitalista. (...) o Estado é, simultaneamente, um instrumento essencial para a expansão do poder da classe dominante e uma força repressiva (sociedade política) que mantém os grupos subordinados fracos e desorganizados”. (Carnoy, 2004, 98)

E na busca da reprodução da sociedade capitalista, cada uma das sociedades que compõem o Estado tem seus meios. A sociedade civil segue o caminho do convencimento e do consenso. Já a sociedade política prefere optar pelo uso da coerção. Ambas, seja através da força ou do convencimento, buscam a hegemonia e o poder do Estado. Mas uma coisa é certa: são esses dois elementos, sociedade civil e política, que sustentam a hegemonia. E é através do poder conseguido por um dos lados (a burguesia) que é construída a hegemonia, que por sua vez vai convencer o povo a aceitar suas teses. “...a hegemonia de Gramsci se expressa na sociedade como o conjunto de instituições, ideologias, práticas e agentes ... que compreendem a cultura dos valores dominantes”. (Carnoy, 2004, 95)
Mas essa hegemonia é construída no espaço da sociedade civil onde se constrói, também a contra-hegemonia, defendida por Gramsci. E o que seria essa contra-hegemonia? Seria a base da estratégia de Gramsci, onde a classe trabalhadora se organizaria no confronto com a classe dominante, em busca da hegemonia proletária e contra a exploração da própria classe. Isso se daria porque, para Gramsci “o controle do Estado não é suficiente para garantir que o poder passe para um grupo oposto (tal como o proletariado)” (Carnoy, 2004, 108), ou seja, a tomada do Estado pelo proletariado não significava o controle do poder, não seria suficiente para estabelecer a hegemonia proletária. Isso porque o Estado era apenas mais uma peça do sistema, não necessariamente a principal, e por trás dele havia uma forte estrutura da sociedade civil.
Mas, ainda assim, a classe dominada precisava reagir. A essa organização da classe proletária Gramsci chama de guerra de posição, uma alternativa à “guerra de movimento”, que seria o ataque ao Estado, uma luta pela consciência da classe operária. Na primeira o avanço seria para tomar o espaço criando uma consciência coletiva na classe trabalhadora, uma hegemonia proletária para sitiar o Estado burguês.

“... a “guerra de posição” se baseia na idéia de sitiar o aparelho do Estado com uma contra-hegemonia, criada pela organização de massa da classe trabalhadora e pelo desenvolvimento das instituições e da cultura da classe operária”. (Carnoy, 2004, 110)

Na segunda, a guerra de movimento, o avanço seria para ocupar uma posição estratégica na sociedade civil e acessar o Estado, então sociedade política, para daí tomar o poder. O erro desta estratégia seria a falta de organização da classe trabalhadora e de alicerces para uma nova cultura. “Ele (Gramsci) vê a guerra de movimento (assalto frontal) não apenas como incorreta do ponto de vista da estratégia, mas também como deixando um vazio no desenvolvimento de uma nova sociedade”. (Carnoy, 2004, 111)

Em busca de reconhecimento

Reconhecimento é algo que todos querem e têm direito. Mas, para uma grande parte da população - e aqui deixamos claro que estamos nos referindo à população brasileira - isso não é possível. Existe uma maioria excluída, despreparada para a busca de seus direitos civis, que por mais que tentem falar, ninguém ouve suas vozes. Esse grupo, às vezes chamado de minoria, devido a preconceitos étnicos, raciais, sexuais ou religiosos, é formado por homens e mulheres comuns, desorganizados, em precárias condições de vida seja em relação à habitação, alimentação, saúde, educação e/ou lazer. A relação social entre indivíduos é uma luta constante, com grupos que se dividem entre a imposição da própria vontade e a resistência dessa imposição pelo outro lado, gerando conflitos de classe. Para Axel Honneth, todos conflitos sociais têm como base uma luta por reconhecimento.
Segundo Hegel, a teoria do reconhecimento objetiva mostrar “que todo processo de interação é constituído pelo reconhecimento mútuo e que todos os conflitos estão baseados na violação desse consenso que fundamenta acordos subjetivos”. (Mattos, 2004, 150) Já para Nancy Fraser, reconhecimento é uma questão de justiça.

“... ela quer mostrar que a categoria do reconhecimento pode ser melhor explicada de acordo com um padrão universal de justiça, aceito por todos, a partir do pressuposto de igual valor do ser humano. Logo, não-reconhecimento para ela é analisado menos em relação às atitudes depreciatórias sofridas pelos indivíduos, mas mais pela análise de práticas discriminatórias institucionalizadas”. (Mattos, 2004, 150)

Um dos maiores problemas dessas minorias que tentam resistir a imposição da burguesia está em se fazer ouvir. É que essas vozes precárias, subordinadas, geralmente ‘gritam’ sozinhas. Não se direcionam em torno de um objetivo comum. São, em grande parte, individualistas, e quando conseguem se unir em busca do bem comum, estão, na maioria das vezes desorganizadas.

“... nem todas as três esferas de reconhecimento contêm em si, de modo geral, o tipo de tensão moral que pode estar em condições de pôr em marcha conflitos ou querelas sociais: uma luta só pode ser caracterizada de “social” na medida em que seus objetivos se deixam generalizar para além do horizonte das intenções individuais, chegando a um ponto em que eles podem se tornar a base de um movimento coletivo”. (Honneth, 2003, 256).

A relação entre indivíduos é o meio de orientar a intenção de cada grupo de elevar o poder e dispor das possibilidades da vida. Possibilidades essas que deveriam ser oferecidas a todos pelo Estado do qual fazem parte, sem distinção de cor, raça, sexo, religião e língua.

“O crescimento de uma sociedade civil plural permitiu uma ampliação enorme dos padrões culturais que regulamentam as diferentes arenas de ação social. Como resultado, tem-se a constituição de uma ordem eticamente plural na qual os padrões e horizontes de valores são bem mais contestados e estão abertos a mudanças”. (Mattos, 2004, 154)

As lutas sociais existentes buscam essas possibilidades, embora com bem menos sucesso do que o desejado. Como determinar a lógica moral dessas lutas? Segundo Axel Honneth,

“já nos começos da sociologia acadêmica foi cortado teoricamente, em larga medida, o nexo que não raro existe entre o surgimento de movimentos sociais e a experiência moral de desrespeito: os motivos para a rebelião, o protesto e a resistência foram transformados categorialmente em ‘interesses’, que devem resultar da distribuição desigual objetiva de oportunidades materiais de vida, sem estar ligados, de alguma maneira, à rede cotidiana das atitudes morais emotivas”. (Honneth, 2003, 255)

De acordo com Nancy Fraser, a luta por igual redistribuição das oportunidades enfatiza a injustiça socio-econômica, assim como a injustiça cultural. Podemos citar como exemplos a exploração do trabalho e a marginalização econômica, além da privação. Já no campo das lutas contra as injustiças culturais, segundo Mattos, busca-se soluções para destruir determinados padrões sociais de comportamento preconceituosos, como o não reconhecimento de práticas representativas, comunicativas e interpretativas de uma cultura.
A solução para essas injustiças: a econômica se daria com a redistribuição de renda, reorganização do trabalho e tomada de decisões democráticas; a cultural implicaria em algumas mudanças culturais - reavaliação positiva de identidades discriminadas, valorização da diversidade cultural, ou a transformação dos padrões de representação e comunicação.

“O que preocupa Fraser é a desconexão entre as duas dimensões dos conflitos sociais, a dimensão econômica e a cultural, que estão normalmente associadas. O que ela percebe nas novas demandas dos movimentos sociais por reconhecimento de identidades culturais é precisamente a minimização e não-tematização das questões referentes às desigualdades econômicas, numa ordem social globalizada e marcada por injustiças econômicas. A separação entre as dimensões econômica e cultural é falsa na visão dela. O desafio então é descobrir como conceitualizar reconhecimento cultural e igualdade social de maneira que uma demanda não enfraqueça a outra”. (Mattos, 2004, 145)

Uma das formas de se lutar pelo reconhecimento de uma classe é o uso da informação e da comunicação para tal fim. Mas como fazê-lo, levando em conta que a maioria dominante controla, também, os veículos de comunicação de massa e não pretendem abrir mão nem mesmo de centímetros do espaço conquistado para dividi-lo com a minoria excluída? Este grupo precisa tomar conhecimento da própria situação, aprender a refletir e criar consciência crítica para depois passar a agir da melhor maneira, baseado na teoria da “guerra de posição” de Gramsci. Mas para passar todas essas barreiras e chegar ao processo de busca da igualdade, essas pessoas precisam, antes, lutar pelo reconhecimento. Para isso se faz necessário, entre outras coisas, a democratização dos meios de comunicação. Mas, já que, como vimos, não é um objetivo fácil de alcançar, a saída é começar com o que se tem em mãos, e uma das possibilidades é o uso de veículos alternativos, como, por exemplo, as rádios comunitárias.

Minorias, preconceitos e oportunidades

Movimentos militantes raciais, feministas e sexistas estão caminhando na busca por reconhecimento através da unificação de suas vozes. Porém, tal trabalho ainda não é plenamente reconhecido, mesmo entre os grupos pelos quais lutam. Falta de divulgação e dificuldade de formar opinião pública são fatores que contribuem para essa realidade. São grupos que lutam por causas diferentes, mas que guardam as mesmas diferenças, as mesmas conseqüências e os mesmos preconceitos. Essas minorias precisam de espaço para se organizarem e se fazer ouvir, cada um com seu propósito.

“No caso das lutas envolvendo questões de gênero e raça tem-se que afirmar tanto o princípio da igualdade quanto o da diferença. O movimento feminista teve de lutar para desconstruir a injustiça econômica através da denúncia de que o gênero estrutura a divisão fundamental entre trabalho produtivo e assalariado e trabalho reprodutivos, doméstico e não-assalariado, típico de mulher. Além disso, o gênero também estrutura a divisão de trabalho entre ocupações profissionais e bem pagas dominadas por homens e o trabalho doméstico, mal pago, dominado por mulheres”. (Mattos, 2004, 147)

Não é muito diferente o que ocorre com o movimento negro. Além da luta do movimento contra a divisão do trabalho entre ocupações mal pagas ocupadas pelos negros, e as ocupações bem remuneradas ocupadas pelos brancos, existe a luta cultural que defende o engrandecimento da cultura negra.
Para que esses grupos busquem a igualdade e o reconhecimento através da redistribuição de oportunidades, precisam recorrer à correção de resultados indesejados.

“Para vencer os dilemas entre redistribuição e reconhecimento, pode-se adotar medidas afirmativas ou transfomativas. As medidas afirmativas têm por objetivo a correção de resultados indesejados sem mexer na estrutura que os forma. Já os remédios transformativos têm por fim a correção dos resultados indesejados pela reestruturação da estrutura que os produz”. (Mattos, 2004, 147)

Um lugar ao sol

Para que as classes dominadas consigam ocupar seu lugar na sociedade civil, precisa, segundo a teoria da guerra de posição de Gramsci, se articular e começar a trabalhar o lado sócio-econômico-cultural através de reivindicações e formação da opinião pública. E para que consigam ser formadores de opinião, precisam, antes, se inserir nesse meio. Dessa forma poderiam, com a contra-hegemonia, combater a hegemonia da classe dominante, conseguida através do convencimento das massas.

“Tal hegemonia, nos termos de Gramsci, significava o predomínio ideológico dos valores e normas burguesas sobre as classes subalternas”. (Carnoy, 2004, 90). “A classe burguesa situa-se como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda a sociedade, assimilando-a a seu nível cultural e econômico”. (Gramsci, 1971, 260 apud Carnoy, 2004, 101)

Sabendo que a sociedade civil faz parte da superestrutura do Estado, e que a parte dominante dessa controla essa superestrutura, podemos dizer que esses dois eixos controlam a hegemonia de tal forma, que resta à classe subordinada poucas alternativas, senão a luta contra-hegemônica.

“Podemos, para o momento, fixar dois grandes “níveis” superestruturais: o primeiro pode ser chamado de “sociedade civil”, isto é, o conjunto dos organismos vulgarmente denominados “privados”; e o segundo, de “sociedade política” ou do “Estado”. Esses dois níveis correspondem, de um lado, “a função de “hegemonia”, que o grupo dominante exerce em toda sociedade; e, de outro, à “dominação direta” ou ao comando, que é exercido através do Estado e do governo ‘”jurídico”. (Gramsci, 1971, 12 apud Carnoy, 2004, 92-93)

O projeto contra-hegemônico de Gramsci, com todas suas teses utópicas (utopia socialista) seria desenvolvido na sociedade civil, através do processo de transformação radical, ou seja, não seria apenas uma mudança econômica ou política, ou ainda no poder de produção. É mais do que isso, é uma mudança na cultura da sociedade.
Isso geraria uma crise da hegemonia, resultado de más ações dos grupos dirigentes, ou de forte militância política de massas até então passivas. O grupo dominante perderia o poder de convencimento, visto que as massas contariam com os intelectuais para direcionar-lhes a opinião, e teriam, assim, outras visões que difeririam do ponto de vista do grupo dominante. Este perde a direção da sociedade civil, restando apenas como classe dominante, que exerce somente a força de coerção.
Mas como difundir as opiniões desses intelectuais, de modo a confrontar com o monopólio dos meios de comunicação de massa controlados pela burguesia dominante e conseguir formar uma opinião pública crítica e que entre em contradição com a implantada pelo grupo que está no poder, de forma a causar a perda da legitimidade dominante e do consenso das práticas consideradas legítimas, instaurando, assim, a crise de hegemonia?

O papel dos meios de comunicação democratizados na sociedade civil

Para realizar tal feito seria necessário o trabalho coletivo dos meios de comunicação alternativos, em acordo com intelectuais voltados para a causa da contra-hegemonia e profissionais militantes de movimentos sociais, ou ainda que apoiem a causa. Dessa forma haveria um apoio e definição da luta ideológica orgânica, unificada com esses movimentos. Haveria uma quebra da ilusão formada nas massas pelas classes dirigentes.

“A burguesia utiliza todos estes elementos e sua expansão ilusória para incorporar a classe operária como classe operária, sem consciência de sua posição de classe no desenvolvimento global da burguesia. Ao tomar parte do poder e do controle burgueses, os trabalhadores permanecem uma classe explorada, contribuindo essencialmente para o enriquecimento de uma minoria (que permanece uma minoria) às custas dos trabalhadores”. (Carnoy, 2004, 101)

Para que as massas possam formar opiniões e lutar por um lugar ao sol através do direito à comunicação, se faz necessário que haja a democratização dos meios de comunicação. A estrutura de comunicação no Brasil, concentradora e monopolista, impede grandes movimentos das massas. Alguns países não permitem que uma só empresa atue em todas as áreas da comunicação ou que um só empresa atue em toda a extensão territorial. Isso se dá para desconcentrar o poder da informação.

“No Brasil tem empresa que atua no país inteiro, e em todos os ramos, concentrando uma grande audiência em suas mãos. Com isso concentra na mão de um grupo empresarial muito poder sobre a sociedade brasileira. É prejudicial à pluralidade, é prejudicial a uma visão ampla e democrática e à democracia”. (Renildo Calheiros, deputado federal, em entrevista)

A proposta de comunicação plural leva em conta os três modelos dos meios de comunicação: estatal, privado e público (comunitário). Os meios privados – com importante papel na promoção de serviços e entretenimento e na geração de empregos - não devem ser concedidos em troca de favores políticos, mas geridos por radiodifusores e acompanhados por conselhos formados pela sociedade civil. Os estatais devem desenvolver o papel do Estado na educação e promoção da cidadania. Já os públicos, ou comunitários, devem ser dirigidas por grupos de interesses comuns e caracterizadas pela democracia.

Rádios Comunitárias como veículo de inserção social

Todos nós temos o direito de existir, incluindo-se, nesse direito, o direito de se expressar, comunicar, reivindicar, emitir opiniões, desejos, receber informações capazes de formar conceitos críticos e dar aptidão para analisar a sociedade na qual vivemos. Para que isso se torne uma realidade e não fique apenas no plano dos ideais, precisamos lutar para que aconteça a inclusão social e o desmantelamento do monopólio da comunicação no Brasil.
Combater a concentração dos meios de comunicação no país é uma árdua tarefa. As rádios comunitárias, por sua vez, trabalham na outra ponta desse dilema, contra o monopólio, exercendo o papel de veículos alternativos de comunicação e inclusão social. O que se faz necessário para tal fim é a multiplicação desse meio plural nas mãos da comunidade. Uma vez de posse de tal canal de comunicação, a sociedade se presta a exercer seu papel cidadão, e a ela resta o desafio do bom uso desse meio.
Mas o que é uma rádio comunitária? A que se presta? O que designa esse termo? Como democratizá-la?

“Foi consolidado o conceito de entidade comunitária, habilitada para execução do serviço de radiodifusão comunitária, como entidade que não pode manter vínculos de subordinação com qualquer outra e que deve expressar um projeto de construção coletiva de unidade na diversidade, através da garantia estatutária ao ingresso como associado de todo e qualquer interessado domiciliado na área de prestação do serviço, bem como de outras entidades sem fins lucrativos sediadas nesta área e, também, da garantia de que todos os seus associados têm direito de votar e ser votados para todos os seus cargos de direção, assim como o direito de voz e voto nas deliberações sobre a vida social da entidade, nas instâncias deliberativas existentes”. (Relatório do Grupo de Trabalho do MC)

Assim, os movimentos de classe, étnicos, gênero ou movimentos gays têm, nesse veículo, uma opção para se inserir na sociedade como formadores de opinião, iniciando, dessa forma, mais um capítulo da contra-hegemonia e confrontando, desse modo, com a ‘revolução passiva’, que Gramsci define como sendo a tática em que o Estado tenta impedir que as massas dominadas exerçam sua influência.

“Gramsci usa o termo “revolução passiva” para indicar a constante reorganização do poder do Estado e sua relação com as classes dominadas para preservar a hegemonia da classe dominante e excluir as massas de exercerem influência sobre as instituições econômicas e políticas”. (Carnoy, 2004, 103)

Ele completa ainda dizendo que,

“Defrontado com massas potencialmente ativas, o Estado institui a revolução passiva como uma técnica que a burguesia tenta adotar quando sua hegemonia está de alguma maneira enfraquecida. O aspecto “passivo” consiste em “impedir o desenvolvimento de um adversário revolucionário, ‘decapitando’ seu potencial revolucionário”. (Carnoy, 2004, 104)

Gramsci considera que as massas de trabalhadores são também capazes de desenvolver a consciência de classe. Da mesma forma, grupos que têm seus direitos humanos, sejam civis, políticos, culturais ou sociais violados, podem seguir o exemplo, e partir na luta por reconhecimento com a ajuda das rádios comunitárias contribuindo, também, para a descentralização das comunicações no Brasil. “Quanto mais intensa for a atividade da rádio comunitária, melhor para o país, melhor para a democracia. Precisamos começar o trabalho de enfrentamento da macroestrutura da centralização das comunicações no Brasil”. (Renildo Calheiros, deputado federal, em entrevista)

Mas a dificuldade em obter a concessão de uma rádio comunitária já é, por si só, um entrave e uma verdadeira peregrinação burocrática e morosa. Acredita-se que entre os quase 2.500 processos de pedido de concessão arquivados, encontram-se casos que podem envolver arbitrariedades e injustiças praticadas. Como forma de reparação de tais injustiças, o grupo de trabalho do Ministério das Comunicações que lida com essa questão apresenta a proposta para que o ministério ofereça oportunidade às entidades que tiveram concessões negadas, para que, a curto prazo, possam ingressar com solicitação de revisão da decisão de arquivamento, acompanhada de justificativa e documentação comprobatória.

“Destacamos que se o Poder Executivo Federal pode mobilizar extraordinariamente recursos para reprimir a atuação e emissoras comunitárias não autorizadas – como ocorre no caso da Força Tarefa criada para integrar a atuação da Anatel e da polícia Federal – também pode, e deve, constituir os recursos extraordinários necessários para assegurar os direitos de cidadania estabelecidos na Lei 9.612/98 e dar o processamento devido e adequado aos pedidos de autorização para execução dos serviços de radiodifusão comunitária o que, até o fim da gestão passada no Ministério das Comunicações, infelizmente, não havia sido feito” (Relatório do Grupo de Trabalho do MC)

Ainda assim, não basta apenas obter a concessão desses veículos e descentralizá-los, disseminando-os entre as massas dominadas. Distribuir essas rádios entre líderes populares é importante, mas é apenas o primeiro passo. Colocá-las nas mãos de pessoas interessadas em promover a diminuição da desigualdade social e com poder de formar opinião pública, para, dessa forma, criar a consciência coletiva na classe dominada é primordial, assim como trabalhar esses veículos de forma coerente e direcionada na busca de um objetivo comum. A atuação dessas rádios deve adequar-se aos fins sociais e comunitários estabelecidos pela Lei 9.612/98, que regulamenta o veículo.

Conclusão

Se por um lado o Estado funciona como superestrutura para garantir a hegemonia para a classe burguesa, através de conceitos que levam as classes subordinadas a adotar a ideologia das dominantes, consentindo, elas mesmas, essa dominação, por outro existe todo um movimento contra-hegemônico trabalhado com as bases que, ainda que não totalmente formatado, pode se erguer, à medida que a população subordinada desenvolva consciência coletiva e passe a agir, saindo da acomodação que lhes é imputada.
É preciso quebrar a corrente através da qual a classe dominante molda a sociedade civil da forma que deseja. Existe uma possibilidade concreta para alavancar tal quebra? Dependendo da postura da sociedade, sim. Claro, num contexto de trabalho a longínquo prazo, para que essa busca por reconhecimento não se torne utópica. Mas caso se continue com a atual visão, dentro de um sistema capitalista viciado, não se conseguirá mudar jamais.
Por outro lado, o trabalho contínuo de mobilização e desenvolvimento da consciência coletiva nas bases, no melhor estilo do ‘trabalho de formiguinha’, pode, sim, começar a dar resultados. Que não se espere resultados que possam “mudar o mundo”, ou criar uma sociedade perfeita, sem desigualdades sociais e sem exploração da classe trabalhadora, uma vez que vivemos num sistema capitalista cada dia mais arraigado. Caso contrário, cairíamos, mais uma vez, na armadilha da utopia. Sabido que a desigualdade jamais cessará, ao menos que seja justa, baseada na força de trabalho, e não na exploração de classes.
O que pretende-se é diminuir essa desigualdade social, dando oportunidades às minorias excluídas, quebrando preconceitos e promovendo a busca coletiva dos direitos humanos, para que essas minorias lutem pela diminuição dos conflitos sociais – que, segundo Honneth, seriam constituídos de uma luta por reconhecimento - e a unificação da luta social, que, dessa forma, se generalizaria, deixando de ser individual para ser coletiva.
Encampando-se essa luta coletiva, esses grupos excluídos passariam, pouco a pouco, a ocupar seu lugar dentro do sistema. Não o lugar que lhes foi delegado, sem perspectivas e oportunidades, mas um lugar que lhes é de direito, a medida em que passem a ter consciência do espaço que podem ocupar dentro da sociedade capitalista. Essa tomada de consciência e esse avanço, que Gramsci chama de contra-hegemonia, seria o início da quebra da desigualdade.
Como alternativa para o início dessa árdua tarefa, existem os canais comunitários de comunicação, que têm, nas rádios, seu maior aliado, visto o alcance e a aceitação por parte da população que atinge. É a partir desses focos, marginalizados e discriminados, que se deve começar o trabalho: expandir os conceitos, criar um elo entre os indivíduos, desenvolvendo um envolvimento social mais humanitário nas comunidades, mostrar como age o sistema, e principalmente, o caminho para lutar contra ele. Não se deve, nesse caso, trabalhar uma política paternalista de fazer o papel social desses indivíduos, mas antes, ensinar e deixar que eles mesmos o façam. “Utilidade não é assistencialismo, porque esse deseduca, trata com pena, não ensina a lutar” (Marcus Aurélio de Carvalho, coordenador geral da UNIRR, em entrevista)
Dessa forma os veículos comunitários podem sim, sem dúvidas, desenvolver um papel inclusivo e se tornar o primeiro grande passo nessa mobilização, em busca de uma sociedade mais justa, com menos desigualdades e mais oportunidades para todos, e principalmente, as camadas excluídas e discriminadas da população. Não que sejam auto-suficientes para, sozinhos, mudar o sistema. Esses veículos tem seus limites, e isolados, não vão acabar com as desigualdades sociais.
Como reza a estratégia contra-hegemônica, os meios de comunicação de massa, apesar de importantes para reduzir as desigualdades e alcançar algumas conquistas sociais, não conseguem, sozinhos, mudar o mundo. Eles não são suficientes para mudar a estrutura e implantar as reformas estruturais necessárias para atenuar as desigualdades sociais. Mas já se colocam como excelente arma para um bom começo de conscientização e mobilização.

Eveline Alves
Recife, maio de 2005

Bibliografia

CARNOY, Martins. Gramsci e o Estado. In Estado e teoria política. Campinas, SP:
Papirus, 2004 (89 - 117)

HONNETH, Axel. Desrespeito e resistência: A lógica moral dos conflitos sociais. In Luta
por reconhecimento. São Paulo, SP: Editora 34, 2003 (253 - 268)

MATTOS, Patrícia. O reconhecimento, entre a justiça e a identidade. In Lua Nova, nº 63. São
Paulo, 2004 (144 – 161)